domingo, 19 de dezembro de 2010

Raiz da Minha Essência


A amendoeira

Era assim que se chamava. A amendoeira era por excelência um local mítico, onde alguns dos estudantes se dirigiam para estudar, estudar em grupo, obviamente também para namorar. Este terreno tinha para além de outras plantas de fruto, azeitona, hortícolas, amêndoa, uma mina e uma fonte. Lugar lindíssimo principalmente junto da fonte, onde nós estudávamos.
Quantas vezes o colega mais bem relacionado com a matemática fazia de nosso professor, com tudo o respeito pelo professor de matemática que era uma excelente pessoa, mas nós aprendíamos mais naquele local com o nosso colega do que nas aulas, o envolvimento era diferente enquanto nas aulas éramos trinta alunos ali, éramos no máximo dez.
O que acontecia na Matemática ocorria também em outras disciplinas, havia colegas que assimilavam melhor, então ensinavam a malta.
De quando em vez bebíamos da água que ali passava, apesar de não ser em grande quantidade, a fonte tinha sempre água corrente. Feita de cantaria e cimento, no cimo pedras lascadas, em forma oval, davam outra beleza à fonte que para seu adorno ostentava umas roseiras bravas, com flores cor-de-rosa e branca, que davam um cheirinho especial naquele local. Um local de belas recordações.
  
O Malhar o pão

As cearas estavam bonitas, nesse ano era ano de boas colheitas, os cereais estavam grados, antes deste começar a cair havia que iniciar a ceifa.
Pela manhã, muito cedo, minha mãe acordava-me para ir ajudar o pai na carreija do cereal para a eira, o transporte do centeio e do trigo era feito em carro de bois, ou de bestas. Os molhos eram fixados nos estadulhos do carro, depois era passada uma corda para que estes não caíssem. À medida que o cereal ia chegando íamos criando a meda e depois do cereal estar todo na eira, era colocado sobre a pedra da eira e ali era malhado com um malho formado por dois paus um maior do que o outro, unidos por uma pega de couro.
 Era sempre a mesma pessoa a fazer este trabalho, o meu pai, claro, só podia ser, era um mouro de trabalho,  não tinha domingos nem feriados, enquanto os outros homens aos domingos iam passear o meu pai não podia, a sua rotatividade era constante, quando não era na vinha era no Bacelo.
Depois do cereal malhado era dividido para o meu pai e para o dono da terra.
Como tudo isto era injusto! Então quem trabalhava a terra, quem colocava os adubos, quem punha o trabalho, logicamente que era o meu pai, e o dono do terreno o que fazia? Dava a terra para cultivar, e quando chegava o momento de dividir era meio por meio… nunca consegui perceber muito bem tal situação mas não tinha que opinar, pois a minha idade não me permitia fazê-lo. Sempre defendi que a terra devia ser de quem a trabalha.     
No ano seguinte deu-se a inauguração da escola primária da rua …., ali fiz a 4ª. Classe. Fui viver para a Rua da Rapadoura, numa casa pequenina onde cresci, na companhia de amigos, amigos de infância, onde as pessoas se ajudavam umas às outras. Uma rua acolhedora de gente humilde e honesta, trabalhadora, do inicio da rua até ao fim todos se falavam, havia uma grande amizade, as crianças brincavam na canelha, porque não havia carros, brincávamos sem barreiras. Enquanto as meninas jogavam à macaca os meninos jogavam à bola, ao pião, ao berlinde, havia muitas crianças e todos os dias havia brincadeiras, aos professores, aos médicos, aos papás e mamã, às estátuas, à mamã ou papá dá licença, entre outras. Era assim o dia à dia das crianças da minha rua, fazíamos os trabalhos de escola em conjunto, os mais velhos ensinavam os mais novos, era muito bom, fazíamos das escadas do patim a nossa escola, onde aprendíamos uns com ou outros.
Depois dos deveres feitos era brincadeira, aí dávamos asas à nossa imaginação, fazíamos carrinhos com os rolamentos ou rodas das charruas, carretas, uma gancheta e um aro da roda da bicicleta já estava pronta outra brincadeira, de um pedaço de madeira fazíamos uma pistola de brincar, das bexigas dos porcos fazíamos uma bola, enfim qualquer coisa dava… nas árvores fazíamos trapézios, e havia alguns de nós que brincavam naquela coisa, havia que passar o tempo, desfrutar das condições que tínhamos, e acima de tudo desfrutar de ser criança.
                Quando havia mais tempo e pretendíamos jogar aos cowboys, íamos para a serra, que não ficava muito longe naquela altura. Levávamos arcos e flechas, que fazíamos com as varetas dos chapéus-de-chuva, ou ainda de um pau de giesta, qualquer galho de árvore dava para isso, lá íamos até à mãe-d’água, onde fazíamos as nossas brincadeiras. Era assim que dávamos valor às coisas, porque não havia dinheiro para outro tipo de brincadeiras.
O patim era a nossa mesa de bilhar, onde também jogávamos ao berlinde, de um pau de vassoura fazíamos o taco e havia umas bolas em plástico que custavam 50 cêntimos. Contudo estas brincadeiras tinham horas e sempre que havia lugar a brincadeiras, não se podia entrar em casa depois do toque de rezar, havia uma obrigação imposta por meu pai de que àquela hora tinha que estar em casa, estando ele ou não, porque se o não fizesse havia de ter para contar.  


A Doença de meu pai

Uma noite de Inverno, fui-me deitar, o que acontecia muito cedo, pois não havia electricidade, não tínhamos televisão, o rádio era a pilhas… O meu quarto ficava no rés-do-chão como era o único rapaz, as minhas irmãs tinham um quarto para elas, no 1º. Andar.
Estava muito frio, chovia que Deus a dava, contudo apercebi-me de um barulho estranho, parecia que a casa ia cair, o sobrado tremia. Um pouco a medo levantei-me e chamei pela minha mãe:
- Mãe, mãe, a casa está a tremer, será um sismo?
A minha querida mãe respondeu muito aflita:
 -Oh meu filho, meu querido filho,  não é nada disso, é o pai, anda ajudar a mãe. Subi, ao ver meu pai caído sobre o soalho, fiquei sem saber o que fazer, minha mãe chorava, as minhas irmãs acordaram com o que estava a acontecer, todos nós chorávamos ao ver o nosso pai naquele estado, confesso que nunca tinha visto semelhante coisa, pensava que o meu pai era um homem muito forte, que nada nem ninguém o conseguiam abater, enganei-me, pois a partir desse dia, fiquei a saber que meu pai tinha uma doença muito grave, a epilepsia, e que talvez por falta de medicamentos tenha tido um ataque. Essa noite foi para mim para além de um grande pesadelo a maior de todas as noites, embora não sabedor do que era, fiquei com o retrato por muito tempo na minha mente.
 De facto estranhava pois o meu pai não bebia bebidas alcoólicas nem em casa nem fora dela, outros homens bebiam o seu copo de vinho e o meu pai bebia sumo ou água.
Após este dia a mãe falou-nos mais sobre a doença do pai, dos cuidados a ter e que poderia haver mais noites ou dias iguais àquela noite.
           
A primeira matança do porco

Meus avós paternos viviam na Rua da Serra, agora Rua Maximino Correia, onde todos os anos criavam um porco a meias com os meus pais, depois matavam em Dezembro, era uma forma de obter carne para gasto de casa. Embora não houvessem frigoríficos as carnes eram guardadas em arcas de madeira, onde a carne era envolvida com o sal, então chamavam de salgadeiras ou sal mouras.
Logo pela manhã mulheres e homens preparavam-se para a matança do porco. Uma grande fogueira, a palha para queimar o porco, as facas e pedras para o limpar e muita água que íamos ao Rossio buscar aos cântaros, porque os meus avôs não tinham água canalizada (e quem tinha água canalizada naquela altura?), eram cedo preparados.
Chegado o matador do porco tomava o mata-bicho, que era composto por figos, nozes, amêndoas e um cálice de aguardente ou um cálice de vinho do porto. Traziam o porco para a rua, onde quatro homens o seguravam e o colocavam sobre um banco. Depois do matador lhe passar a corda pela focinho, amarrava-o ao banco e a partir dali, espetava a faca, ficando esta até o animal morrer.
O sangue era aproveitado, para os chouriços doces. Então a minha mãe, batia aquele sangue para não coalhar, que depois guardavam.
O porco depois de bem limpinho era levado para o 1º. Andar da casa, onde se pendurava na trave e ficava durante dois dias, até que o senhor o viesse desfazer. Nesse dia as panelas de ferro enchiam até à boca, pois era muita gente para comer, o garrafão do vinho era presença obrigatória.
 As batatas cozidas com a carne do porco, tudo isto feito por minha avó e minha mãe, sabiam que nem ginja, era um dia de festa, onde depois de almoço as pessoas ficavam em amena cavaqueira, os homens jogam cartas e as mulheres continuavam na lida das carnes, porque havia de dar continuidade à matança. Enquanto para os homens acabava a tarefa por esse dia, as mulheres ficavam a tratar das tripas e das carnes, pois havia que preparar tudo para depois se fazerem as alheiras, as chouriças de carne e os salpicões.
Passados dois dias por volta da hora de jantar, o senhor aparecia e lá ia desmanchar o porco, presuntos e pás iam para as salgadeiras entre outras carnes, parte das costelas do porco eram assadas na brasa e servidas ao jantar. Dias depois começava a tarefa da feitura dos chouriços de sangue, as alheiras, as chouriças de carne e os salpicões. Era sempre bom para mim quando assistia.
Quando a avó e mãe faziam as alheiras e o resto do fumeiro, eu ficava por perto, pois se era necessário ir comprar qualquer coisa que fosse preciso lá ia eu, é lógico que tinha as minhas recompensas. Depois de todos os temperos estava tudo pronto e a mãe ou a avó colocavam num prato, para eu comer, sabia-me pela vida, era comer e chorar por mais. Quando era das chouriças de carne e dos salpicões a fogueira estava sempre acesa, lá tinha que fazer um sacrifício e comer um pedaço de carne assada, não podia comer muito pois era muita gente.
Depois de tudo feito era colocado numas varas junto da lareira, as chouriças de carne e os salpicões ficavam numa talha com azeite, para os conservar, porque o meu pai dizia “tudo isto é para o alto”, quantas vezes me interrogava o que é que eles queriam dizer com aquilo, até que um dia perguntei mas quem é o alto, ao que a minha mãe respondeu:
- O alto é o Verão, as colheitas, o ter alimento para levar para os campos.
E eu a pensar que aquilo era outra coisa.
Os chouriços de sangue também se guardavam, as alheiras é que não, não havia congeladores então comíamos alheiras a várias refeições.  

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