domingo, 23 de janeiro de 2011

Raíz da Minha Essência


O Tempo de estudante
               
O tempo de estudante e da amizade que foi crescendo a partir dali, que crescia em cada dia que passava, em cada jogo de bola, enfim das brincadeiras propícias da juventude, dos trabalhos de grupo…como eu me recordo…andava no 6º. Ano de escolaridade e fiz juntamente com o outro colega, que também fazia parte do grupo de amigos, em trabalhos manuais “o emblema do Benfica”, em fragmentos de vidro, que havia de ser considerado um dos melhores trabalhos, ficando como recordação num quadro na parede do Liceu.
Que saudades do tempo em que tínhamos frequentado a escola primária, dos deveres escolares, de reguada que apanhávamos, por várias razões, do jogar à bola no recreio da escola, ao pião, à barra, ao mata, às estátuas…
Todos os dias tínhamos uma refeição sem que tivéssemos de pagar, o que normalmente era uma sopa na hora de almoço. Antes de começar a comer tínhamos de rezar ao Senhor uma oração que era mais ou menos isto: “Agradeço-vos Senhor este alimento que vou tomar, que ela repare as minhas forças para melhor vos servir e amar”. E era assim que ficávamos com estômago quentinho. Depois de agradecer tal alimento seguíamos uns para casa outros ficavam por ali, nas brincadeiras, próprias de miúdos de escola.
Recordo que aquando da inauguração da Escola Primária, a chamada da serra, ouve uma bonita festa, com meninas e meninos a fazerem vários números, que entretiveram as pessoas que foram a assistir. Eu fui cantar já não sei o quê, contudo as pessoas bateram palmas, não sei se por terem gostado ou era pelo facto de eu ser miúdo, então aplaudiram foi um bom incentivo.


Os ranchos da Azeitona e da Amêndoa

Era ainda muito miúdo, a noite estava muito serrada, alguém batia à minha porta, era a mesma pessoa que diariamente ali batia, umas vezes já acordado outras ainda a dormir. Era o reunir as pessoas que faziam parte do rancho da apanha da azeitona, depois íamos acordar outras pessoas.
Algumas viviam um pouco longe do local combinado, então para não virem sozinhas íamos ter a casa delas. Já todos reunidos, homens levaram as varas na mão e mulheres cada uma levava a sua cesta. Numa “taleiga” levavam a merenda, subíamos para a carrinha que nos havia de levar ao olival e uma vez ali um dos homens fazia uma grande fogueira, para que as pessoas se pudessem aquecer pois o tempo era de gelo e de chuva, aquela vida não era nada fácil.
Os homens começavam a varejar as oliveiras e a azeitona caía sobre os toldos, aquela que caía fora era apanhada pelas mulheres, e no final do dia era fazer a limpa. Muitas das vezes era noite escura quando chegavam a casa. E assim andavam durante vários dias, era o trabalho que havia, e as pessoas tinham que se sujeitar aquilo para poder sobreviver e criar os filhos. Muitas destas mulheres tinham os maridos imigrados mas não dava para tudo e elas tinham de ter algum dinheiro para poderem governar a casa.
Geralmente nestes ranchos havia sempre um feitor aquela pessoa que era empregada da casa e que para além do rancho da azeitona tomava conta de tudo quanto tivesse a ver com a agricultura. Apesar de ser uma vida árdua e rude, principalmente as senhoras passavam o dia a cantar. Cada uma cantava sua canção, uma mais bonita que a outra. Quantas vezes me deliciava a ouvi-las! Apesar da agressividade da vida aquelas pessoas cantavam para espantar os seus males, vida dura, mas alguém tinha que o fazer e esta parte calhava sempre aos pobres, aqueles que nada tinham.
A apanha da amêndoa não era tão difícil, até por que a época é diferente, enquanto a azeitona se apanha no Inverno a amêndoa apanha-se no final do Verão, contudo dá o seu trabalho e tal como na azeitona os ranchos funcionam da mesma forma. Depois da amêndoa apanhada era levada para as casas dos patrões. Mas, após a apanha havia trabalho para mais uns dias, era necessário colocar a amêndoa na debulhadeira, só depois era ensacada.             


O guardar dos castanheiros

Ainda na primária e na altura das castanhas, meu pai trazia um souto a meias com o dono, então tocava-me a parte da guarda dos castanheiros. Lá ia na companhia de outros colegas, que também faziam a mesma coisa. Após o horário da escola seguíamos em direcção à serra, onde para além de guardarmos os castanheiros fazíamos os deveres escolares e depois destes a brincadeira empunha-se. Os esconderijos eram tantos que, por entre as fragas e a vegetação, quase nos perdíamos no labirinto. Era o respirar do ar puro, de um ambiente em que aquela serra era um pulmão para nós e para todos. Apesar de pequenos, as pessoas que pretendiam apanhar castanhas ao se aperceberem da nossa presença voltavam para trás, era todos os dias assim, enquanto houvesse castanhas.
Todos os anos se faziam os magustos, em especial nas Capelinhas, onde muito cedo as pessoas iam chegando uns de carro, outros a pé, com o serrão da comida. Como era bom ver aquelas famílias desfrutarem de um dia diferente, era um piquenique em plenas capelas, em que nada faltava, da carne ao pão, do vinho à cerveja, aos sumos, às laranjadas.
Enquanto a marrã assava na fogueira, as castanhas rebentavam por entre as giestas e o pinheiro.
Ano após ano neste dia as capelinhas eram o lugar de eleição de muitos vilaforenses, tudo corria bem, porém, mais uma das coisas que se deixou perder, pois creio que hoje nada disto existe.



O Natal em criança

Enquanto criança todos os Natais eram iguais, passados em família, raramente íamos para casa de outros familiares, nunca faltou o bacalhau, e o polvo, no dia de consoada.
Nesse dia o jantar era igual à maior parte das pessoas da Terra e não só, talvez do País, as batatas, as couves, o bacalhau, o polvo.
O pai caso não fosse Domingo ia trabalhar, pois no dia de consoada trabalhava até as 6 ou sete da tarde (noite).
A mãe começava a fazer algumas coisas no dia anterior, as bolas de bacalhau, as bolas de polvo, as bolas ameladas, as rabadas, os sonhos, os bolinhos de sertã, (rosquilhas), apesar de tudo isto, para meu pai só era consoada quando houvesse arroz-doce. Nessas noites os meus pais ficavam a pé até mais tarde, pois apesar de pobres havia sempre um presente para os filhos.
No outro dia de manhã lá ia mais as minhas irmãs, ver o que nos tinham ofertado, obviamente que ficávamos contentes, fosse com que fosse.
No dia de Natal, comíamos a roupa velha, jogava-se ao rapa, tira, põe e deixa, que era um pião muito pequenino, com quatro faces, e se colava a rodar sobre a mesa, depois dependia da sorte de cada jogador, no final voltávamos a distribuir os rebuçados, para que ninguém ficasse triste e lá se passava o Natal.






A Páscoa em casa dos meus pais

Aquando da Páscoa a mãe ia muito cedo para o forno, levava todos os ingredientes para a feitura dos doces desta época, menos a farinha e o fermento, que era posto pela dona do forno.
Depois de terem feito os bolos doces, os bolos de testa, os folares de carne as bolas de azeite e ovos, a mãe trazia os folares numa canastra, que colocava à cabeça e quando a chegava era uma alegria, começava a distribuir por nós, não se podia comer tudo de uma vez, porque os folares não eram só para o dia de Pascoa mas também para o dia de Ramos e o Domingo de Pascoela.
Nestes Domingos geralmente a mãe fazia cacau com leite, que bebíamos acompanhado dos doces. Hoje as famílias já não se deslocam para os fornos para fazer tais coisas, preferem ir aos hipermercados comprar, mas nada é igual, quanto não vale os folares feitos no forno a lenha. Embora hoje em dia as famílias sejam menores, estas mesmas famílias foram perdendo a pouco e pouco mais uma tradição. Recordo-me de que no Domingo de Ramos a Igreja Matriz mais parecia um olival de tanto ramo de Oliveira que o Senhor Padre tinha que benzer. Hoje as pessoas levam duas ou três folhinhas de oliveira e nada mais, quando um ou outro leva um pedaço maior, logo o vizinho do lado diz “Por pouco trazias a oliveira”. Faria se estes senhores me vissem quando criança.
Chegava casa, a mãe fazia um ramo, que para além da oliveira tinha alecrim e uma camélia, caso não tivesse camélia colocava outra flor, levávamos aos padrinhos que depois nos davam o folar, aqui o folar era outra coisa que não o folar de carne, era uma peça de roupa, dinheiro, chocolates, enfim uma variedade de coisas, cada um dava o que podia.
Depois voltávamos a casa com as ofertas, o dinheiro os pais ficavam logo com ele, as outras coisas eram dividas por todos, pois nem todos tinham os padrinhos na vila. Recordo que embora os meus padrinhos não estivessem na vila, levava o ramo à minha avó paterna, que dava pelo Tio Manuel e pela Tia Maria.
Geralmente era na Pascoa que os meus pais mandavam fazer uma peça de roupa, em especial umas calças, ao alfaiate da terra.
Nas festas havia sempre a intenção de ter qualquer coisa diferente na mesa, pois não era todos os dias que se comia um pedaço de carne nem uma posta de peixe.
 A vida era mesmo assim, muitos filhos, um mísero ordenado não dava para tudo, os meus pais tinham que fazer uma grande ginástica mas todos nos criamos com mais ou menos dificuldade.
Nos dias de festas da terra era a mesma coisa, tinha sempre um manjar melhor que o resto dos outros dias do ano.       





A entrada no liceu

Mais tarde entrei no liceu, na Escola Preparatória Doutor Vasco Pires de Sampaio. Neste edifício funcionava o 7º, 8º e 9º Anos, onde miúdas e miúdos se viam pela primeira vez.
O olhar desconfiado de alguns de nós, a minha turma só de miúdos, da Vila e das Aldeias do concelho, era uma coisa nova para mim e para todos, contudo não foi muito difícil a aproximação aos meus colegas, que a pouco e pouco nos fomos conhecendo. No final de cada ano lectivo tinha lugar uma festa feita por professores, alunos e pessoal auxiliar.
Como na escola primária cantava, ali também o fazia, acompanhado de um professor que tocava viola e um senhor da secretaria que tocava guitarra. Era muito bonito, as pessoas gostavam.
Mais tarde todo o colégio fez uma grande festa, ouve teatro, pintura, fados, outras canções.
Tal como na escola primária o liceu também tinha a sala de refeição, onde as pessoas que queriam tinham o almoço. Na parte de tarde havia o lanche, muita das vezes também lanchava, bebia um copo de leite e acompanhava com um pão com manteiga, marmelada, queijo ou fiambre, pagava 1$50, porém muita das vezes ajudava as pessoas da copa em várias tarefas e elas em troca davam-me sempre qualquer coisa. Gostavam de mim, sabiam que os meus pais não podiam despender todos os dias daquela importância.
    






A Primeira Contra-dança

Meus pais falavam que haviam entrado na contra-dança quando solteiros. Esta era um grupo de pessoas, orientados por um senhor da família, que cantavam e dançavam nas ruas da vila e que se tinham formado aquando da inauguração do Hospital da terra.
Quando me falaram da possibilidade de entrar num grupo achei a ideia bonita, porque já havia visto outras pessoas de contra-danças anteriores e disse a mim mesmo que gostaria de entrar quando tivesse idade para o fazer.
Um dia o pai chegou do trabalho e ao jantar conversou comigo e disse-me:
- Olha vamos formar um rancho que será composto por um grupo de jovens que irão actuar nas ruas da vila por volta do Carnaval.
Depois perguntei ao meu pai se havia a possibilidade de eu entrar nessas danças. Disse-me que sim.
Também fui e as pessoas tentaram ver quem ficava com quem, alguns pares já estavam completos porque eram namorados, outros tiveram de escolher entre si.
O João ficou com a Joana, o Manuel com a Maria e assim se formou um conjunto de jovens que iriam actuar nos dias de Carnaval.
Todos os dias havia ensaios, na sede do Vila Flor Sport Club, o mestre com toda a sua atenção e paciência, rigor nos métodos de trabalho, lá nos ensinava a dar os passos certos.
Com maior ou menor dificuldade lá íamos, cantando e dançando aquelas modas, que encantavam toda a Vila. Algumas delas já haviam sido cantadas pelos meus pais, que também eram dados a estas coisas, e como eles também eu vivia estas tradições, ensinando-me as canções e dando sempre a sua opinião, “deves fazer desta ou daquela maneira”, eram o meus maiores críticos, queriam que eu não falhasse.
Todas as danças eram muito bonitas, ensinadas e aprendidas com muito carinho, umas letras antigas faziam o aguçar do apetite, que aprendíamos em grupo ou a sós.
Os treinos com os arcos e a dança do mastro, eram feitos de forma repetitiva, por que eram aqueles que mais exigiam de nós. Nos treinos só entravam as pessoas que faziam parte da contra-dança, para que fosse uma surpresa. Chegava o dia da estreia, então tudo tinha que correr bem. Os arcos eram enfeitados ao gosto de cada um, as fitas também, só que nas fitas tínhamos que escorrer em conjunto as cores que cada par ia levar.
Corríamos a vila, onde actuávamos em vários locais, as pessoas acompanhavam a contra-dança, na praça, na avenida, no largo da igreja, no rossio, na fonte…, as pessoas adoravam e até já participavam das cantorias. Eram dias diferentes, passados com alegria, com reinação.
No final todos ficamos contentes por termos feito tudo bem, pelas pessoas terem gostado e aplaudido fortemente, ficando uma vontade no ar de para o próximo ano. Não podíamos perder esta tradição, havia que implementar em todos os jovens a vontade de participar, era a nossa terra que ali estava presente.
Embora nunca tivéssemos ido para outros locais, esse grupo estava pronto para o fazer, quantas vezes nos foi dito pelo mestre que por ele levaria o grupo aonde as pessoas nos deixassem, só que apesar da nossa dedicação, nunca houve da parte de quem comandava os destinos desta terra, a vontade de ter um grupo folclórico. Vai lá saber-se porquê… Contudo ficávamos com a nossa consciência tranquila, pelo menos com aquilo que tínhamos feito.

Liberdade

Mais tarde foi o chegar da liberdade, onde o povo teve a alegria merecida de iniciar a vida em Democracia, de fazer sentir que a partir dali os governantes haviam de ser eleitos por Homens e Mulheres, enraivecidos de tanto ódio, de tanta revolta, de tanta desigualdade.
Vila Flor foi a Vila Vermelha, onde os democratas começavam a pôr mãos à obra e é então que aparece uma fonte da qual nunca tinha ouvido falar - a Fonte das Vestas - situada entre o Terreiro e a capela do Mártir S. Sebastião, onde eu mais tarde havia de passar uns bons momentos, na companhia dos amigos.
Ao 25 se Abril, e aos homens e mulheres do 25 de Abril, devo a passagem para o Rossio, não é que na Rua da Rapadoura tivesse sido mal tratado, tivesse inimigos, não, pelo contrário, recordo esta Rua com uma saudade imensa, onde vou muitas vezes durante as férias que ali passo, todas as pessoas gostavam de mim, onde a maior parte dos meus amigos ficaram, onde as passadeiras para o Dia de Corpo de Deus, eram as mais bonitas, não obstante haver outras também bonitas e as pessoas que me perdoem, mas a rapadoura pela sua configuração era única, onde se trabalhava arduamente para que tudo corresse na perfeição, onde depois da procissão passar havia sempre o bailarico, onde rapazes e raparigas, novos e velhos, festejavam aquela que era para nós a melhor.
As pessoas que reviveram esta fase, sabem do que estou a falar. Havia inclusive pessoas que não vivendo na rua, nos vinham a ajudar e eram sempre bem vindos, entravam porque gostavam das pessoas daquela rua, queriam fazer parte desta festa, queriam dizer que afinal embora não residindo na rapadoura tinha por aquela rua e por seus residentes uma grande amizade.
Deu-se a minha passagem para o Rossio, para uma casa que era dos meus familiares e agora de meus pais.
Foi a partir desta data que dei o “salto”, entre o adolescente e o adulto. Apesar da idade consegui pouco a pouco, conquistar outros amigos, conhecer outras pessoas e que até ali apenas via diariamente e entre nós não havia mais que um bom dia



O rebusco da Azeitona

Embora os amigos de escola continuassem a ser os mesmos, havia outros que para além da escola eram os amigos do rebusco da azeitona ou da amêndoa, um grupo que tínhamos dificuldade financeira, porque as famílias numerosas, havendo necessidade de fazer tal coisa, que tanto me custava, pois era um miúdo, mas as precises eram tantas que havia de ajudar por algum lado.
Não me envergonho de o ter feito, pois ao fazê-lo estava a ajudar os meus pais e irmãs, a termos azeite para todo o ano, era dinheiro que não saía, para a compra de tal bem alimentar, já que oliveiras não tínhamos, razão tem o povo quando diz: - “Quem cabritos vende e cabras não têm, de algum lado vem”.
Recordo que, muitas das vezes, enquanto os meus amigos enchiam as mochilas de azeitona eu fumava uns cigarros juntamente com o guardador dos olivais, onde os meus amigos faziam a moina. Mau, era no final do dia, quem é que aguentava com tanta azeitona às costas e muitas das vezes por caminhos de cabras, subindo ladeiras, descendo ladeiras, bem distantes da Vila, por entre muros e fragas, onde nos escondíamos quando alguém aparecia, mas tínhamos que trazer o rebusco, ali não podia ficar, tanto trabalho tinha dado.
Era então com bastante dor, que ponhamos pés ao caminho, parecíamos tartarugas, onde o saco da azeitona era a carapaça, todos dobrados, quase batíamos com o queixo nos joelhos, lá íamos em direcção a nossas casas, muitas das vezes já de noite, onde nos esperava a família com um sorriso de orelha a orelha, convictos de termos ganho a sardinha, sim, pois as pessoas mais velhas, quando nos viam passar diziam-nos entre outras coisas “hoje mereceis a sardinha.”
E era assim todos os dias, enquanto havia azeitona para apanhar E foi assim durante alguns anos, nunca chegava a casa sem azeitona, havia entre nós rebusqueiros um lema, para casa de mãos a abanar é que não, embora não houvesse uma obrigação desmedida em ter de levar rebusco. Tinha alguma graça quando o meu pai levava a azeitona para o lagar onde o azeite era feito, o encarregado dizia em tom de brincadeira… “Oh Abílio, este ano a tua oliveira estava carregadinha”, aí o meu pai respondia… “tenho que a tratar bem porque até agora Deus só me deu esta”.
Todos os anos era assim, mal a azeitona começava a amadurecer iniciava também para aquele grupo de rapazes o rebusco. Não havia frio, não havia chuva, não havia gelo nem neve que nos fizessem recuar.
Quantas vezes chegávamos a ir até à Junqueira, sempre a pé, saiamos muito cedo de casa, por vezes a merenda era comida ao pequeno almoço, não dava para trazer a taleiga da merenda na mochila, porque onde a merenda estava ocupava lugar e aí podíamos trazer mais azeitona.
Muitas das vezes era do campo que nos alimentávamos, não havia nada que se nos escapasse, comíamos onde o havia, as dificuldades da vida faziam com que tivéssemos esses procedimentos.
A noite chegava muito cedo, e nós lá íamos por vales e montes, raramente o fazíamos por estrada, da Junqueira à Chandasna, depois pelo Cardal, entravamos pela Volta dos Tristes e subíamos o Terreiro, em direcção a casa, noite escura…quantas vezes. Enquanto houvesse azeitona o grupo mantinha-se em actividade, quantas vezes a ida à escola ficava para segundo plano…quantas vezes…



O ceifar do cereal

Aquando das cegadas (ceifas), era necessário levar o pequeno almoço ao pai, então lá ia eu e a São, que é a minha irmã mais velha, pelas capelas, até à “massarrolha”, onde meu pai ceifava o trigo e o centeio, numa terra que trazia a meias com o meu Tio António, já falecido.
Era necessário “acarrar” os molhos de trigo e do centeio para um local mais perto do caminho, para que assim o carro que fosse buscar o cereal, não tivesse que entrar na terra. Então eu e o meu primo João, mais velho que eu, trazíamos os molhos e começávamos a fazer a “meda ou relheiro”, dava muito trabalho, não podia dizer que não, havia ali muito trabalho infantil, mas só havia um remédio, era fazer.
No “cardal” era mais difícil ainda, porque o terreno era muito íngreme, bastante largo e comprido, e consequentemente a rodeira onde o carro passava ficava mais longe. Quando era necessário ir à água para beberem, ia ainda mais longe, tinha que ir aos poços que por ali havia, conhecia tudo, ninguém negava um cântaro de água. Depois o meu primo foi para o Brasil e aí fiquei eu a fazer a carreja sozinho, tinha que ser, não havia volta a dar-lhe.




A minha bicicleta
  
Quando o João foi para o Brasil, deixou-me uma bicicleta só que a bicicleta era “roda 28”, grande de mais para mim que com cerca de nove dez anitos, não chegava aos pedais, e acabou por ficar uns dias junto da porta na casa da Rapadoura.
Um dia enchi-me de coragem e peguei na bicicleta. Coloquei-a ao cimo da rua, montei e deixei-me ir. As coisas estavam a correr muito bem só que a descer todos os santos ajudam, o pior era subir, tinha que a trazer à mão. Tantas vezes desci e subi um pouco já cansado. Um dia quando descia, perdi o equilibro e bati com a cabeça no muro, alguém me levou a casa, só que quando lá cheguei levei uns acoites da minha mãe, porque segundo ela, não tinha nada que tirar a bicicleta dali, pois era muito grande para mim e disse ainda que me a ia tirar dali e só quando tivesse mais idade andaria com ela. Foi levada posteriormente para a casa da minha avó materna, eu bem lá ia todos os dias mas não podia sair dali com ela, senão apanhava uns valentes acoites.
Acabou por se enferrujar, quando mais tarde ia para a tirar para a rua, não tinha ponta por se lhe pegasse, acabou no lixo.
Recordo que a mãe apesar da lida da casa, de tomar conta de nós, de nos trazer sempre limpos, ajudava o meu pai, ia ripar folha dos negrilhos, que havia junto da estrada. Muita das vezes também ia, quantas vezes para bem longe, ficava junto do negrilho, enquanto a minha mãe e mais duas senhoras, ripavam a folha. Depois colocavam o saco à cabeça aí vínhamos até à vila.
Como era difícil a vida, quando não era folha era brasas, sim, brasas, íamos para a massarrolha e fazia-mos uma fogueira depois aproveitavam as brasas que vendiam na terra para as pessoas com mais poder económico colocarem nas braseiras. Tempos muito complicados, muitos filhos pouco rendimento mensal, havia de fazer qualquer coisa.
Quantas manhãs a minha mãe deixava os pratos da farinha na arca para o nosso pequeno-almoço, outras vezes éramos os mais velhos que dávamos o pequeno-almoço aos mais novos, pois os pais não estavam e tínhamos de fazer de pais dos nossos irmãos.
 Havia a necessidade de fazer lenha para casa, para fazer face ao Inverno, então o meu pai ia aos Domingos para a serra e outros, sítios, onde fazia lenha para nos aquecermos, obviamente que eu apesar de tenra idade também ia, era todos anos assim.
Embora nem todos fossemos estudantes havia amigos que tinham deixado de estudar após o exame da 4ª. Classe, para irem trabalhar, uns nas obras, outros em vários trabalhos, tinha de ser assim, era a vida…

 

No dia seguinte

                Era noite e os amigos voltavam de novo a encontrarem-se, pouco a pouco foram chegando, o grupo estava completo, éramos os mesmos do dia anterior. Quando nos preparávamos para seguir até à Câmara Municipal, um carro apita, mais uma vez, outra vez, é então que um grande amigo saiu do veículo e vem em nossa direcção. Não cabia em si de contente por nos ter visto a todos juntos que depois de nos cumprimentar disse:
- Não me digam que vão para a noite de recordações?
- Sim – respondi – como vês não perdemos tempo, do grupo de amigos faltas tu e mais dois, que pelas informações este ano não vêem à vila, ligaram para dar um abraço ao pessoal e que para o ano estão por terras de Trás-os-Montes mais propriamente em Vila Flor.
Esse amigo pediu apenas o tempo de levar a família a casa e depois vinha ter connosco à Câmara ou ao Rossio.
Mal tínhamos chegado ao Rossio já esse amigo nos fazia companhia. As suas perguntas eram constantes, para todas teve resposta, de um ou de outro amigo
 -Então meus amigos já recordaram as nossas namoradas?
Um de nós respondeu:
- Já falamos um pouco mas agora com a tua presença impõe-se que se fale mais em concreto, até porque foste aqui estudante, namoras-te sempre na terra e tu melhor que ninguém sabe como era.
- Ai é? Então vamos lembrar o tempo do romantismo, recordar as ganiras, os nossos amores, as nossas alegrias, as nossas tristezas enfim eu que sou um romântico quero recordar as namoradas do tempo de estudante.
  Foi uma risada geral, pois tenho a certeza que foi muito bem aceite por todos, cada um falou um pouco do seu primeiro namoro, da sua primeira paixão, paixões, que acabavam por não surtir efeito, pois namoro de estudante tão depressa chegava como depressa ia, mas tínhamos que namorar…como que namorar fosse preciso.
Cada um falou, havia um sorriso no olhar, o olhar ficava mais brilhante que antes, havia preocupação de termos presente que algum de nós teria ficado muito bem caso tivesse optado casar com aquela namorada.
Depois de alguns dos meus amigos falarem e terem todos referido coisas bonitas, pois não tinham perdido o jeito, as capacidades estavam intactas, pelo meio um pouco de sarcasmo, mas era mesmo assim, havia que chamar as coisas pelos nomes,  porque havia ali amigos que tinham razão mais que suficiente, para tal revolta,  quantos deles foram arranjar amizades em outros locais devido a coisas supérfluas, coisas sem pés nem cabeça.
Mas a noite era de recordações bonitas então descemos ao terreiro, tendo um de nós dito:
 -E a fogueira de Natal? Como era giro! O garrafão andava de mão em mão até acabar, depois alguém havia de ir buscar outro. Era sempre assim até bem de madrugada, as pessoas desciam a vila, vinham ao terreiro ver a fogueira, mais parecia um dia de festa.
- É bem verdade aquilo que dizes amigo - retorquiu o Joaquim - e mais, alguns ficavam mesmo até de manhã, havia sempre alguém que trazia o pão, o presunto, o salpicão e as chouriças.
Aí o Manel colocou mais:
- Então não se lembram das alheiras que gamava à minha mãe para comermos aqui assadinhas?. Não se lembram, pois é.
- Oh Manel, a gente sabe que sim mas olha e se fosses a casa dos teus pais e trouxesses um pedaço de presunto e pão, já que as alheiras para as assarmos não temos aonde.
- Não temos? - pergunta o Nando - temos sim senhor, vamos até ao cabanal da casa do Jorge e lá assamos a alheiras, olha então é que vai ser!
- Hoje não dá, para outro dia sim – disse o Jorge - hoje a família foi comer fora, e utilizou a telheiro.
                Então fomos para o pelourinho que se situa defronte da Igreja Matriz, ali sentados cada um falou de sua justiça.
                Todos recordamos essencialmente o porquê de várias coisas, entre as quais um jantar convívio entre nós e as nossas famílias mais chegadas. Depois cada um foi para casa. Só que eu tinha que recordar, tinha na mente uma amiga diferente, uma rapariga bonita, inteligente.





Uma amiga especial

Era miúdo eu sei, mas já ouvia os mais velhos falar das namoradas e eu também tinha de um dia começar a vida. É mesmo assim, à medida que se cresce. Então já no sexto ano comecei a namorar (andar), ela era a minha primeira namorada eu o primeiro namorado, dizia ela, mas tudo bem.
Andei ali uns dias indeciso não sabia se lhe havia de dizer se não, pois também não sabia qual a reacção, não lhe disse directamente mas mandei recado por uma amiga, no outro dia obtive a resposta, através de um bilhete e no final das aulas lá nos encontramos.
Nervoso, um pouco a medo, lá fui, era uma situação diferente, pois embora todos os dias nos falássemos num grupo de rapazes e raparigas, a partir dali seria completamente diferente, deixarmos de dialogar entre todos a passarmos a falar um para o outro.
Os dias iam passando, só falávamos no final das aulas, não podíamos ficar muito tempo, por que ela tinha de apanhar o autocarro escolar que a levava à terra. No dia seguinte era igual e era assim todos os dias até ao fim de semana. Por vezes deslocava-me para a terra dela, embora não fosse muito longe, contudo nem sempre dava para ir, por vezes apanhava boleia.
As coisas iam bem, os estudos quer da parte dela quer da minha parte também, mas passados dois três meses, o namoro acabou, sem saber muito bem como e porquê… Enfim, coisas de miúdos que acabam por ter quase sempre este fim. Embora tivéssemos deixado de andar continuamos a falar, como amigos, pois o grupo de amigos era o mesmo, não havia qualquer problema, é claro que quando qualquer discussão ficava entre mim e ela havia sempre qualquer coisa no meu interior que me tocava, por vezes provocada por outros amigos, com a intenção de continuarmos a namorar, sentia várias vezes isso, por parte das amigas mais íntimas, contudo as coisas iam passando.
Por vezes quando nos olhávamos parecia que havia qualquer coisa entre nós que não tinha ficado bem esclarecida. Eu com o medo de a magoar, ela com o medo de me magoar, deixamos de ter talvez uma conversa a dois, sem barreiras.
 Mas nunca conseguimos vá lá saber-se porquê…
Antes do ano lectivo acabar, outra miúda começa a entrar na minha cabeça, não a via com ninguém, as companhias dela eram apenas raparigas, lá andava um outro rapaz mas com a finalidade de conquistar alguma amiga dela.
Um belo dia, um desses rapazes veio ter comigo e perguntou:
- Olha lá, daquela miúdas todas qual é a que tu andas a tentar engatar?
- Talvez aquela que tu não estás interessado a não ser que me digas qual é a tua preferência – respondia.
- Sabes o meu género está mais virado para outra fulana!
De pronto lhe respondi:
 -Sendo assim podes ir à tua vontade porque essa não faz o meu género.
Assim foi, ele partiu ao encontro da tal rapariga e eu ao encontro de outra rapariga, só que para minha surpresa ao abeirar-me dela, esta saiu a correr. Fiquei estupefacto, com tal reacção, perguntei a mim mesmo o que terá passado na cabeça daquela rapariga, tentei saber alguma coisa através das amigas, mas estas não me disseram rigorosamente nada. Contudo no ar ficou a sensação de que algo estava errado, que eles sabiam mas não iam contar, ao ponto de eu perguntar:
- Então qual de vós vai dizer o que se passa.
 De pronto uma delas disse:
- Porque que não vais atrás dela? Se não a vires, amanhã terás a resposta, como deves saber devemos aproveitar as oportunidades que nos aparecem, quando não aproveitamos acontece isto que acabas de ver.
- O quê? Mas do que é que tu estás a falar? Troca isso por miúdos.
- Sou amiga dela mas também sou tua amiga, não vou dizer nada, se alguém tem de falar é ela não eu.
- Tudo bem - disse eu - agora percebo…
- Pois é Nando, não sei se vais a tempo.
   E assim foi, depois das aulas fui para casa, obviamente que aquilo que se havia passado não me saía do pensamento. 
No dia seguinte ao chegar ao liceu vi-a um pouco triste, dirigi-me a ela e perguntei-lhe:
 -O que se passa contigo? Porque foste embora? Queria falar contigo e não me deste qualquer possibilidade e correste que nunca mais te vi.
- Sabes que já a alguns dias a esta parte que tem havido uns olhares em tua direcção e fiquei triste por só ao fim de vários dias avançares, sempre pensei que o fizesses mais cedo, pois agora estou num dilema, o rapaz do 6º. B, perguntou-me se queria namorar com ele e fiquei de lhe dar uma resposta.
-Olha, tu é que sabes, não quero problemas com ninguém, se gostas desse rapaz deves aceita-lo para teu namorado, se não gostas  não o faças, porém o teu coração é que manda.
- Seja como for espero que não me leves a mal, pois vou aceitar o outro rapaz, porque já engraço com ele.
Tudo bem! Faz o que a tua consciência te diz, e sê feliz, vou ficar por perto a torcer por ti, já que não é comigo que és feliz que sejas com esse rapaz, até porque do que conheço dele é um tipo porreiro, um bom estudante capaz de te fazer feliz, e até quem sabe vir mesmo a casar contigo, já que se trata de um indivíduo de ideias fixas.
Disse-lhe ainda que não era necessário ter ido embora, pois eu iria aceitar tudo como acabava de o fazer.
- Por vezes a razão tem coisas que nem mesmo ela conhece, mas seja como for a minha opinião está tomada, só não queria magoar-te – disse-me cabisbaixa.
Os dias iam passando e o final do ano lectivo também, os ensaios para o final do ano começavam e eu lá estava atento a tudo. Foi-me perguntado se queria entrar em várias coisas, disse que sim, entraria no desporto, em qualquer modalidade que tínhamos praticado durante o ano, no teatro com qualquer papel mas, se houvesse a possibilidade de cantar quanto melhor.
Nos dias seguintes vieram os ensaios e tudo corria de vento em poupa, tudo saía bem, quer na parte teatral quer na parte em que cantava sozinho, acompanhado de viola e guitarra. Actuamos no ginásio do liceu, para todos os estudantes e familiares, tendo tudo corrido muito bem.
No final foi o baile, então todo o mundo pulou e bailou, no final cada um foi para sua casa, ciente que tinha conseguido o objectivo. Essa rapariga continuava a namorar com o mesmo rapaz. Eu tinha passado para o 7º. Ano, não sabia se voltaria a estudar ou não, uma coisa tinha certa, o trabalho nas férias, tal como havia acontecido o ano anterior.

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